O SERTÃO DE MANDUCAIA

 

O CONTORNO PELO OESTE – ESTRADAS E MIGRAÇÕES

 

Enquanto os lavradores atibaienses avançavam pelo Sul, bandeirantes e outros lavradores contornavam Manducaia pelo Oeste, seguindo um velho caminho indígena pré-cabralino, o “o caminho dos goiazes”.

 

     1 – O Peabiru São Paulo/Goiás

 

Eram os “peabirus”, uma rede de estradas pré-cabralinas, que se estendia por toda a América do Sul. Uma delas foi usada pelo velho Anhanguera I, por volta de 1670, e cinquenta anos mais tarde, por seu filho, o Anhanguera II, para alcançar as sonhadas minas de Goiás. (AMUL, 6:133- RIHGB /AHU/SP, 2: 181 e 387).

Os paulistas desde o século XVI o palmilhavam em suas expedições. As bandeiras do “ciclo do Paraupava”, realizadas nas primeiras décadas do século XVII, o usaram com freqüência. (vide o magnífico trabalho de Manuel Rodrigues Ferreira, “O Mistério do Ouro dos Martírios”, São Paulo: Gráfica Biblos Ltda. Editora, 1960, p. 206/259)

Ao longo desse caminho primitivo já vinham avançando lentamente as fazendolas. Capivari e Indaiativa (sic) são  mencionados em 1653 num inventário (Inv. & Test. 27:114); Jundiaí já começava a surgir na primeira metade do século XVII, mas levaria muitas décadas para que as povoações de Campinas, Mogi Guaçu e Mogi Mirim fossem fundadas.

          Uma das melhores informações sobre essa via é a que consta de uma sesmaria dos beneditinos de Jundiaí, em que se diz que esse caminho ia “para o sertão dos Lanceiros e Batataes e Topis”.

Como já dissemos antes, os Topis e Lanceiros, eram tribos distantes; a primeira vivia na Chapada Diamantina na Bahia, e a segunda, conforme Ernesto Ennes, em sua obra clássica, “A Guerra nos Palmares”, p. 387/389, se localizava no rio Gurguéia, no Piaui. Também repetimos: é possível que a expressão “Lanceiros” designasse a tribo, que vivia na época em Goiás e Triângulo Mineiro, mas que eventualmente descia o caminho para atacar as vilas paulistas. E “Batataes”, ponto de  reabastecimento das bandeiras,  acabou virando a cidade paulista do mesmo nome…

Era estrada já bem conhecida e que ia longe; ideal para quem pretendesse viver do comércio com os viajantes.

 

2 Jundiaí

 

Jundiaí foi a primeira vila fundada no “caminho dos goiazes”, e serviria de primeiro pouso para os deixassem a capital. A fundação de Jundiaí está envolta em uma lenda trágica, pela qual a povoação teria resultado de um crime num flagrante de adultério em 1615, mas nada há na documentação coetânea que reforce tal hipótese.

Em meados do século XVII, mais precisamente em 1655, Jundiaí ganhou foros de vila, emancipando-se de São Paulo e continuando a se expandir no rumo norte. Seus moradores começaram a cultivar áreas cada vez mais distantes em 1653 já haviam ocupado Indaiatuba e Capivari.

 

  • Indaiativa e Capivari

 

          Um inventário paulista de 1653 se refere a Capivari e Indaiativa (sic), onde o inventariado (membro da família Jorge Velho) possuía dois sítios. (Inv. & Test. 27:114); embora relativamente afastados de nossa região, esses dois lugares eram mencionados no inventário como pertencendo a terras de Manducaia. Esses sítios eram obviamente uma extensão da fronteira agrícola jundiaiense, já que Campinas ainda não existia. O acesso a essas propriedades se dava certamente pelo velho peabiru que nos séculos seguintes seria conhecido como “caminho dos goiazes”.

 

     4 – A sesmaria dos beneditinos de Jundiaí

 

Faltava até agora encontrar um documento explicito, que esclarecesse o passado nebuloso das origens do povoamento dos vales dos rios Jaguari, Camanducaia e Mogi Guaçu; em suma, era necessária uma “Pedra de Roseta”, como a que os soldados de Napoleão encontraram no Egito e que permitiu decifrar os hieroglifos.

Entretanto, esse documento existe. Está publicado há quase um século. Pode ser encontrado em bibliotecas. É bem verdade que ele não explica tudo, mas dá uma série de pistas e de informações que podem modificar as teorias sobre a origem dos povoados de Mogi Guaçu, Mogi Mirim, Ressaca e Posse, e ainda, possivelmente, até mesmo de Campinas.

Trata-se do registro de uma sesmaria dada aos Religiosos de São Bento de Jundiaí. Há coisa de 15 ou 20 anos, o autor destas linhas encontrou a obra em que estava inserido tal documento. Embora sem avaliar a importância do texto, extraiu uma cópia xerox.  Outros dados sumários sobre a mesma

sesmaria, porém, foram publicados nos “Documentos Interessantes para a História e Costumes de S.Paulo”, volume 31, p. 166, e no Catálogo de Documentos sobre a História de S.Paulo existentes no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa”, publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 9, p. 290.

Demoramos a conseguir uma nova cópia. Mas aí vai ela:

Registo de uma carta de sesmaria de doze léguas de terra dadas aos Religiosos de São Bento na Villa Formosa de Nossa Senhora do Desterro de Jundiaí, Capitania de São Vicente“.

     Alexandre de Souza Freire, Senhor da Casa de Souza, do Conselho de Guerra de Sua Majestade, Governador e Capitão Geral do Estado do Brasil, etc. Faço saber aos que esta carta virem que o Doutor Frei Francisco da Visitação, D. Albuquerque, Provincial da Sagrada Religião do Patriarca São Bento em todo o Estado do Brasil que ele fundou convento da dita religião na Villa Formosa de Nossa Senhora do Desterro de Jundiaí, Capitania de São Vicente, partes do Brasil, 20 léguas pouco mais ou menos do porto do mar para o sertão em muito serviço de Deus Nosso Senhor, e aumento da Coroa Real de Sua Majestade a qual vila não tem campos, nem terras capazes para que junto a ela se possa ter criação de gado vacum, nem outras criações necessárias para os religiosos que estiverem no dito convento se poderem sustentar. 

          Pede a Vossa Senhoria lhe faça mercê, em nome de El-Rei nosso Senhor, e como seu Governador e lugar, loco (sic) tenente em todo o Estado do Brasil três campos realengos que estão quinze léguas pouco mais ou menos desta villa pelo caminho que vae para o Sertão dos Lanceiros e Batataes, que dizem será sobre o primeiro campo, que está passante o Rio Jaguary, e Comendaocaia, e acaba no Ribeirão que se diz Pirapitingui, e acaba na restinga de mato que chamam Capão Grande, e o terceiro campo começa passado o dito Capão e Mato, e acaba no mato que longo do Rio Mogivasei (sic), os quais campos estão todos três pelo caminho que vae para o Sertão dos Lanceiros e Batataes, e Topis, os quaes campos pede todos com suas reçacas (sic), e o mais que se lhe unirem com todos os Capões que nos ditos campos houver para neles os religiosos do dito convento porem seus gados de toda a sorte para seu sustento, e aumento do dito convento sem que outra pessoa alguma o possa fazer nos ditos Campos.  E receberá mercê.

          Essa sesmaria data de 1668…

Em 1798, conforme outro manuscrito, publicado nos “Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo”, no vol. 31, página 166 , consta como propriedade do mosteiro uma “sesmaria no caminho dos goiazes”, sem maiores detalhes, informando que estava ocupada por “posseiros”.

E no Catálogo de Documentos do Arquivo Histórico Ultramarino, volume 9, página, 290, se encontra a mesma referência, na mesma data, noticiando que o mosteiro de S. Bento de Jundiaí tinha uma fazenda no bairro de Sarapoly, concedida por sesmaria. Ao que tudo indica Sarapoly hoje é Santo Antônio da Posse.

Quanto aos Topis e Lanceiros, tribos mencionadas no texto da sesmaria, a primeira vivia na Chapada Diamantina na Bahia, e a segunda, conforme Ernesto Ennes, em sua obra clássica, “A Guerra nos Palmares”, p. 387/389, se localizava no rio Gurguéia, no Piaui. É possível, porém, que a expressão “Lanceiros” designasse a tribo Caiapó (também chamada de Bilreiro ou Caceteiros), que vivia na época em Goiás e Triângulo Mineiro, mas que eventualmente descia o caminho para atacar as vilas paulistas. E “Batataes”, ponto de  reabastecimento das bandeiras,  acabou virando a cidade paulista do mesmo nome…

De qualquer modo, essa estrada já era bem conhecida e ia longe…

Apesar do texto estropiado, é possível reconhecer o nosso Camanducaia, o Jaguari e o Mogi Guaçu, mostrando que esses nomes eram familiares até para monges que viviam longe das tentações mundanas. Mais ainda, dá uma idéia da vegetação primitiva da região, ao informar que não havia campos para criação de gado nos arredores de Jundiaí, mas que os havia passando o rio Jaguari em direção ao Mogi Guaçu, e que esses campos estavam pontilhados de “reçacas” (provável origem do topônimo Ressaca), que significa, segundo os velhos dicionários, “capão de mato isolado em meio a um campo”.

Ficam novas perguntas: porque os beneditinos não pediram os “campinhos”, onde hoje se situa Campinas? será que já estavam ocupados por moradores em 1668? O povoamento de nossa região teria começado 50 anos antes de 1726, pois a sesmaria implica moradores que cuidem delas?  a colonização de Mogi Guaçu, Mogi Mirim, Posse e Ressaca, teria ocorrido a partir daí e não, como se supõe hoje, da bandeira do Anhanguera II?  Então, a pecuária, e não o ouro de Goiás, teria sido a causa do povoamento primitivo dos dois Mogis?

 

5 – Anhanguera I

 

          Em 1670 uma grande bandeira, comandada por Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera I, partiu de São Paulo em direção a Goiás para prear índios. Essa bandeira chegou até o baixo Araguaia, quase na confluência com o Tocantins. Atravessou nossa região na ida e na volta, trazendo índios e algum ouro coletado por um menino, filho do Anhanguera I, o que daria motivo para disseminação da lenda da “mina dos Martírios”, que seria a mais rica do Brasil. É certeza absoluta que essa expedição usou o velho “caminho dos goiazes”, que voltaria a ser trilhado cinqüenta anos mais tarde pelo filho do Anhanguera I.

 

 

6 – Amador Bueno da Veiga

 

          Outro nome famoso, parente próximo dos Anhangueras, comandante do exército de socorro paulista na Guerra dos Emboabas em 1709, Amador Bueno da Veiga foi também ativo caçador de índios e pesquisador de ouro. Chegou a garimpar no sertão do Rio Pardo, provavelmente próximo à atual Caconde.

Foi inventariado em São Paulo, mas “falecera aos tantos de novembro de 1719… andando em descobrimento de minas de ouro na sua fazenda de Mogy”. Entre os bens inventariados não há nenhuma fazenda em Mogi, mas sim “Hum citio na paragem chamada Jaguary, com casas de dous lanços”; entretanto, também constava “gado vacum que está em Mogy”. A fronteira agrícola paulista já chegara, pois, a Jaguariuna e Mogi Mirim, acompanhando o “caminho dos goiazes”. Manducaia começava a ser cercada, não apenas por caminhos, mas também pela lavoura e pela pecuaria…

 

7 – Anhanguera II

 

Em 1722 o Anhanguera II, Bartolomeu Bueno da Silva, filho do Anhanguera I, ofereceu-se ao governo da Capitania de São Paulo para, seguindo as pegadas de seu pai, ir buscar ouro em Goiás. Uma grande expedição, com apoio oficial, foi aprestada e partiu para o norte. Só quatro anos depois, quando já se pensava em mandar um grupo de socorro procurar sobreviventes, a bandeira do Anhanguera II retornou. Ele trazia ouro e tinha a intenção de retornar ao sertão goiano e lá se estabelecer, como de fato fez. Dessa expedição há um relato relativamente minucioso, de autoria do alferes José Peixoto da Silva Braga, no qual narra o roteiro seguido. Segundo esse texto, a bandeira ao sair de Jundiaí penetrou no “mato do Vitorino”, uma floresta densa da qua                                          l só saiu três dias depois, já nas proximidades de Mogi Mirim. Apesar de não fazer menção a nenhum pouso ou outro acidente geográfico nessa etapa, tudo indica que a bandeira passou por locais onde hoje se localizam Campinas e Jaguariúna.

Essa bandeira, porém, mudou a história do “caminho dos goiazes”. A partir dela, dezenas de milhares de paulistas se atiraram para o norte, em busca do eldorado goiano. O que era uma simples trilha de índios e de bandeirantes se tornou uma das estradas mais freqüentadas do Brasil.

 

8 – Francisco Paes da Silva

 

O Arquivo do Estado de S.Paulo, em sua coleção de publicações denominada “Sesmarias”, menciona uma Sesmaria no Camandocaia, ou “feijão queimado”, concedida a Francisco Paes da Silva em 1726, com divisas correndo “pelo dito rio de Jaguari até um saco de campo os Guarulhos tem sua pescaria” (Sesmarias, 3:83/85)

Este Francisco Paes da Silva é o mencionado por Silva Leme no Vol. 2: 466 e 1:422. Seria, portanto, filho de Bartolomeu Simões de Abreu, e de Izabel Paes da Silva; seria trineto de Brás Cubas pelo lado paterno; teria se casado em primeiras núpcias com Inez Monteiro, viúva de Lucas de Mendonça; segunda vez teria se casado, em 1699, com Maria Bueno do Amaral, filha de Antônio Bueno (este filho de Amador Bueno da Ribeira, o aclamado) e Maria do Amaral. Francisco Paes da Silva teria falecido em 1735, já bastante idoso, de vez que seus pais se casaram em 1636 e ele era o filho mais velho.

A importância desta sesmaria está em que não só é um dos documentos mais antigos relativos à nossa região, como mostra que a penetração de Jaguariúna para Pedreira se fez através do rio, evitando o quanto possível enfrentar a mata fechada que aqui existia. Mas contém duas outras informações de sumo interesse: primeiro, a tradução autêntica de Camanducaia como “feijão queimado”, espantando qualquer dúvida que pudesse haver sobre o significado dessa palavra; em segundo lugar, identifica os índios da nossa região como sendo Guarulhos, dedicados à pesca, no rio Jaguari, possivelmente no local onde hoje se encontra a fábrica Nadir Figueiredo. Finalmente, o sesmeiro se declara morador de S. Paulo, Bairro de Atibaia, não havendo indicação de que já morasse no local cuja propriedade solicitava.

Há alguns pontos ainda a esclarecer, pois por essa redação haveria uma sesmaria anterior concedida a Antônio Bueno. Qual seria sua data? e seria precisamente no mesmo lugar solicitado pelo genro? quem eram os posseiros que haviam plantado roças nesse terreno?

Restam muitas perguntas, mas esta sesmaria reforça e esclarece alguns pontos da Sesmaria dos Beneditino de Jundiaí, 58 anos mais antiga. Aos poucos, a bruma densa que encobre as origens desta região vai se desfazendo…

 

 

     9 – O Caminho Velho das Minas

  

Como já foi narrado, um fato distante, a descoberta de ouro no centro de Minas Gerais havia provocado uma avalanche de garimpeiros, bandeirantes, autoridades fiscais e de um enorme número de aventureiros que nada entendiam de mineração, mas que pretendiam enriquecer rapidamente com o metal amarelo. Centenas de milhares de pessoas migraram para Minas, passando uma pelo Morro do Lopo, outras pela garganta do Embaú, no vale do Paraíba, seguindo para São João del Rei e, mais longe ainda Ouro Preto, Mariana e Sabará.

Logo começaram a partir levas de aventureiros também do Rio de Janeiro, que ficava mais próximo das jazidas. Mas eles tinham que vir até o vale do Paraíba para atravessar a Mantiqueira na garganta do Embaú.  Esse era “o caminho velho das minas”. Longo, montanhoso, sem pontos de reabastecimento, o caminho velho era muito insatisfatório. Como era a única alternativa para chegar ao eldorado mineiro, o movimento por ele era intenso. Milhares de pessoas, família inteiras, soldados e marinheiros desertores, sacerdotes e magistrados, todos atravessavam o vale do Paraíba e lá se abasteciam para seguir viagem. O vale do Paraíba prosperou e se adensou com o surgimento de novas vilas como Pindamonhangaba.

 

     10 – O Caminho Novo das Minas

 

Nos primeiros anos do século XVIII, no auge da “corrida do ouro”, o filho de Fernão Dias Paes Leme, Garcia Rodrigues Paes, propôs ao governo da colônia a construção de uma nova estrada, a qual, partindo do Rio de Janeiro, alcançaria Ouro Preto e os demais garimpos.

A conseqüência não se fez esperar. O trânsito foi completamente desviado de Minas para o porto do Rio de Janeiro. O vale do Paraíba se esvaziou, suas cidades entraram em decadência, e a população começou a pensar em sair dali.

Normalmente os valparaibanos teriam migrado também para Minas, acompanhando a horda de aventureiros que continuava, agora por outro caminho, a buscar riqueza lá.

Mas a população do vale do Paraíba era de pacatos agricultores, criadores de gado, pequenos comerciantes, não tinha o espírito aventureiro, nem a cobiça dos “caçadores de ouro”. Os valparaibanos queriam apenas ficar à margem de uma estrada movimentada, onde pudessem vender por bom preço alimentos e outras mercadorias aos viandantes.

O “caminho novo” já estava repleto de pousos e de comerciantes, vindos do Rio de Janeiro e de todas as partes do Brasil e da Europa (milhares de portugueses atravessaram o Atlântico para aventurar fortuna em Minas, e também outros europeus conseguiram lá penetrar, apesar das proibições). Lá não havia lugar para os moradores do vale do Paraíba.

Assim, a única alternativa que restou aos valparaibanos foi se instalarem às margens do velho “caminho dos goiazes”, que, por sorte, agora também levava a um novo Eldorado, Goiás.

     Assim, depois das descobertas do Anhanguera II, dois novos tipos de viajantes passaram a trafegar pelo “caminho dos goiazes”: 1) novas levas de aventureiros em busca de ouro, vindas de toda a capitania paulista; 2) os antigos moradores do Vale do Paraíba, empobrecidos pela redução do movimento na garganta do Embaú, que lhes acarretou a perda da rica freguesia que se dirigia a Minas ou que de lá retornava.

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