O SERTÃO DE MANDUCAIA

 

AS PRIMEIRAS PENETRAÇÕES

 

Mas, no meio dessa floresta densa, picadas abertas em tempos imemoriais pelos indígenas permitiam o acesso rápido aos campos que bordejavam a Serra da Mantiqueira. Eram os “peabirus”, uma rede de estradas pré-cabralinas, que se estendia por toda a América do Sul. Uma delas foi usada pelo velho Anhanguera I, por volta de 1670, e cinquenta anos mais tarde, por seu filho, o Anhanguera II, para alcançar as sonhadas minas de Goiás. (AMUL, 6:133- RIHGB /AHU/SP, 2: 181 e 387). Esses peabirus internos de Manducaia serviriam para que, no futuro, o sertão fosse devassado. Adiante examinaremos mais detalhadamente o papel das estradas no desbravamento e na colonização da região. Elas resultaram na criação de duas frentes de penetração em Manducaia num movimento de pinças, uma avançando pelo sul e a outra contornando pelo noroeste.

     Muitas das penetrações, entretanto, se limitaram

atravessar Manducaia, sem nela se fixar.

 

1 – Knivet

Paradoxalmente, uma das primeiras notícias que se tem da região foi dada por Anthony Knivet, jovem pirata inglês aprisionado no final do século XVI e incorporado a uma bandeira ao sul de Minas Gerais. Knivet desertou com alguns companheiros e desceu um dos afluentes do rio Piracicaba, certamente o Jaguari ou o Camanducaia, mas só ele sobreviveu à travessia do sertão. Knivet conseguiu voltar à Inglaterra, onde escreveu um livro narrando suas aventuras. (RIHGB, 41, 1a:240)

 

2 Domingos Luís Grou

Por volta de 1590 a bandeira de Domingos Luís Grou, que regressava do sertão, foi dizimada num confronto com os índios às margens do rio Pirapitingui, nos arredores de Mogi Mirim, conforme narra com detalhes o volume I das Atas da Câmara da Cidade de São Paulo. Provavelmente, foi esta a principal causa das bandeiras evitarem passar por Manducaia, em cuja borda norte se deu esse massacre. Mas o “caminho dos goiazes” continuou a ser usado, apesar de atravessar um pequeno trecho desse sertão, entre Jundiaí e Campinas.

 

  • As bandeiras do Paraupava

As bandeiras do “ciclo do Paraupava”, realizadas nas primeiras décadas do século XVII, usaram com freqüência  o “caminho dos goiazes”, mesmo porque era a via mais curta e fácil para quem caminhava para o norte. (vide o magnífico trabalho de Manuel Rodrigues Ferreira, “O Mistério do Ouro dos Martírios”, São Paulo: Gráfica Biblos Ltda. Editora, 1960, p. 206/259). Essas expedições se dirigiam a Goiás, indo até a ilha do Bananal, procurando apresar índios para trabalho escravo nas lavouras paulistas. Esse ciclo esteve no seu apogeu entre 1600 e 1625.

 

  • O padre Mateus Nunes de Siqueira

 

Mas, o primeiro explorador sistemático da região ao foi um bandeirante, mas um sacerdote secular, o Padre Mateus Nunes de Siqueira. Em abril de 1664, segundo Monsenhor Paulo Florêncio da Silveira Camargo narra em sua obra “A Igreja na História de São Paulo”, volumes 2 e 3, o Padre Mateus capitaneou uma pequena bandeira que percorreu as florestas ao norte de Atibaia, durante mais de um ano, evangelizando índios Guarulhos, aos quais convenceu a se aldearem próximo à fazenda de Jerônimo de Camargo. Esse aldeamento indígena foi o núcleo original da cidade de Atibaia.

Os índios Guarulhos habitavam toda a região montanhosa do sul da Mantiqueira, desde a serra da Cantareira e da atual cidade de Guarulhos (que deve sua origem e seu nome a uma aldeia desses selvícolas) até onde chegava ao norte o “mato geral”, ou seja, aos arredores de Mogi Mirim. Eram pacíficos, embora às vezes se enfurecessem com as provocações dos brancos; viviam principalmente da caça e da pesca, mesmo porque não tinham ferramentas para fazer grandes roças; e, como consta da sesmaria de Francisco Paes da Silva, de 1726, faziam grandes pescarias no rio Jaguari.

Nada indicava que o Padre Mateus Nunes de Siqueira fosse o homem indicado para essa tarefa de percorrer a região inóspita de Manducaia, arrebanhando índios para evangelizá-los e civilizá-los. Ao contrário, fora capelão da bandeira de

Domingos Barbosa Calheiros, enviada em 1658 ao sertão da Bahia para reprimir as tribos que hostilizavam os colonos. Era o começo da chamada “Guerra dos Bárbaros”, um conflito pouco conhecido pelos brasileiros, mas que foi o mais longo de nossa história, pois só terminou depois de 1700. Foi também o mais extenso, pois combateu-se desde Vitória da Conquista no sul da Bahia até o Ceará.

A bandeira de Domingos Barbosa Calheiros sofreu pesada derrota e seus sobreviventes, inclusive o Padre Mateus, retornaram a São Paulo dois anos depois. Posteriormente, já em 1671, esse mesmo sacerdote recrutava gente para ir novamente combater os ferozes Guerens, que atacavam as vilas baianas. Recebeu até uma carta do regente de Portugal, príncipe D. Pedro (mais tarde rei D. Pedro III), agradecendo esses serviços militares.

Com esses antecedentes, poder-se-ia pensar que o Padre Mateus Nunes de Siqueira fosse um daqueles rudes capelães de bandeiras, um “bicho do mato”, pouco letrado, e incapaz de desempenhar altas funções eclesiásticas. Ledo engano; foi nomeado Visitador (isto é, inspetor) de toda a parte sul da diocese do Rio de Janeiro, desde a Ilha de São Sebastião até Santa Catarina. Foi incumbido de outras importantes tarefas no bispado. Em 1673, junto com sua mãe, D. Maria de Siqueira, instituiu a Capela do Tremembé, para a qual ambos legaram toda sua herança.

Foi esse homem singular, estranha mistura de sertanista e de sacerdote, de pregador e de soldado, que desbravou a nossa região, tornando seus caminhos abertos para as levas de lavradores e vaqueiros que a povoaram no século seguinte.

Os guarulhos, pacificados pelo Padre Mateus Nunes de Siqueira, se recolheram tranquilamente à nascente aldeia de Atibaia na metade do século XVII. Ali se aculturaram e se mesclaram com a população europeizada (mas também já mestiça, pois os mamelucos são um sinônimo de paulista), que para lá também acorria. (Atibaia já era paróquia em 1701 e seria elevada a vila em 1769, premiando o esforço daquele sacerdote, mas também consumando um golpe político dos Pires contra os Camargos – (P.F. DA SILVEIRA CAMARGO, A Igreja na História de São Paulo, 2:326; 3:127; 4:142).

 

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